A Vida dos Bonecos - parte 5
Estava misturado com o fumo da lenha que ardera ao mesmo tempo que ele, de tal modo que era impossível distinguir que fumo era seu e que fumo era da lenha. Mas, subitamente, apercebeu-se de que começava a misturar-se com um fumo que nunca tinha visto, um fumo molhado, cinzento como ele agora era, mas mais limpo, fresco e dinâmico. O vento empurrava agora os três, o boneco, a lenha e este fumo desconhecido. Deslocaram-se durante horas, não sabendo sequer para onde se dirigiam, mas não tinham outro remédio. O dia acabou por nascer e foi a visão mais fascinante que o boneco teve em toda a sua vida. Estava escuro, uma imensa nuvem espalhava-se por todo o céu e tornava a cidade diante dele melancólica e soturna, mas ainda assim era maravilhoso. Finalmente via o mundo exterior. Finalmente via tudo o que estava para lá das quatro paredes que sempre o haviam prendido. Finalmente sentia-se livre, sentia-se mais do que um simples boneco de papel, incapaz de movimentos. Sentia vontade de chorar, mas já nem olhos desenhados tinha. Era apenas uma grande nuvem escura que, de vez em quando, se iluminava e emitia barulhos assustadores. Maravilhava-se com tudo aquilo que via, de tal modo que nem se apercebeu quando o seu corpo agora líquido se começou a precipitar em direcção ao solo. Já ia a meio da queda quando se apercebeu de que se separara do resto da nuvem. Passara por outra transformação; era agora uma série de gotas transparentes que caíam a uma velocidade cada vez maior em direcção à cidade que ainda há pouco o fascinara. Atingiu o chão. As gotas espalharam-se por todo o lado e voltava a sentir a mesma impotência de quando era feito de papel. Não conseguia fazer mais nada a não ser enterrar-se cada vez mais fundo na terra transformada em lama. Tivera um vislumbre do mundo exterior e agora voltava a perdê-lo.
Já quase se resignara à ideia de que não sairia dali quando chocou com um objecto estranho. Tinha o formato de uma pequena gota de água, como ele, mas era duro, castanho-escuro. Sentiu que, à medida que lhe tocava, se conseguia fundir com aquele objecto. Ao fim de alguns minutos, já penetrara completamente na sua nova casa e sentia-se, mais uma vez, a mudar. Mas esta nova transformação era diferente de todas as outras. Sentia-se crescer, a ganhar braços que se espalhavam pela terra e que tentavam subir, como que à procura de algo.
1 comentário:
Já só falta uma parte...
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