A Vida dos Bonecos - parte 4
Gritaria, se tivesse boca. Gritaria para que todos pudessem ouvir a sua dor, apesar de não sentir sequer o calor das chamas. A sua existência chegava agora ao fim. Pouco vira deste mundo. O pó que o cobriu durante anos. Paredes. Escadas. Algumas pessoas. O fogo. Pouco se lembrava do Criador. Quem o criou, não demorou mais de sete dias a perder o entusiasmo, depois de devidamente cortado e pintado, e, ao sétimo dia, trocou-o por um boneco de plástico articulado com acessórios. Afinal de contas, era só um bocado de papel, mal dava para brincar com ele. Não sentia raiva pelo Criador, felizmente também não tivera tido tempo de se afeiçoar a ele. Mas havia algo de que agora se lembrava. A macieira, a árvore imponente que durante toda a sua vida o acompanhara. Lembrava-se de todas as maçãs que vira tombar, de cada folha, de cada ramo. Sabia com exactidão onde e quando a macieira espalhava a sua sombra pelo quarto. Decorara todos os movimentos provocados pelo vento. Chorara com cada poda e com cada sopro de Outono que a despia aos poucos. Suspirara de cada vez que a janela era fechada e enervara-se com cada atraso na reabertura. Invejara cada gotícula de orvalho que ousara pousar nas folhas da árvore que era o único contacto que tivera tido com o mundo exterior. Tudo isso eram agora memórias, não mais teria o prazer de sonhar em abraçar aquela árvore, de sentir o cheiro da casca e das folhas e de provar os seus frutos redondos e fascinantes.
As pernas ardiam, o tronco começava a assumir uma cor acastanhada, em breve deixaria de conseguir ver e assim terminaria a sua existência contemplativa. O fim chegara. Já não era mais do que um pequeno montículo de fuligem e uma indistinta nuvem de fumo. Precipitava-se pela chaminé escura, suja e a malcheirosa. Mais uma vez, era incapaz de controlar a sua substância, mas isso agora não tinha qualquer importância. Misturou-se com o fumo da lenha e prosseguiu a sua subida lenta, na direcção de pequenas luzes que pareciam cintilar lá muito ao longe. De repente, sentiu-se empurrado para o lado. Saíra da chaminé, mas a noite não o deixava ver o que quer que fosse, a não ser as tais luzes longínquas. Continuava a subir em direcção a elas, cada vez mais alto, sem parar, sempre, sempre a subir, enquanto era empurrado pelo vento. Achou estranho que, por muito que subisse, as luzes não parecessem ficar mais próximas, mas achou ainda mais estranho o que se passou a seguir.
2 comentários:
aiiiiiiiiii senhores! tanto suspense! agora vou ficar mortinha para saber o que se passou a seguir....hurry...
Estou a ver que os cortes têm tido o efeito que queria, criar ansiedade... eheheheh
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