05/12/2007

(Título de conto ainda por dar - parte seis)

O dia seguinte amanheceu cinzento. Luís viu o sol nascer ténue, reflectido nas janelas do “Refúgio”, enquanto limpava mesas. As marcas de uma noite mal dormida estavam lá todas: os olhos vermelhos, as olheiras, o cabelo penteado com pouco cuidado e até o mau humor. Rogério foi o primeiro a vê-lo.

- Ui, então, pá? Já tiveram noite louca? Que artista que tu me saíste, pá!

Luís ignorou-o. Continuou a empurrar o trapo desinfectado para um lado e para o outro, absorto nos mesmos pensamentos que o mantiveram acordado durante boa parte da noite. Se uns dias antes era Inês que lhe assaltava o espírito, agora eram os seus próprios sentimentos que o angustiavam. Não sabia o que se passava. Lera inúmeros livros que falavam de romance, de luxúria, alguns até de amor, mas a verdade é que tinha passado mais de metade da sua vida enfiado num orfanato, com dezenas de rapazes em seu redor, e o resto da vida dividira-a entre o trabalho e a casa. As pessoas que conhecia e que tratava como amigos contavam-se, literalmente, pelos dedos de uma mão: Rogério, Beatriz e o Sr. Ramiro. A D. Rosa sempre o olhou de lado, desconfiada, nunca lhe deu grande confiança. Tinha, portanto, três amigos e sobravam-lhe dois dedos. Areias e Inês seriam fortes candidatos a preencherem a mão, mas o primeiro era um gato, fazia companhia, sim, mas Luís dificilmente poderia depender dele em caso de necessidade, e a segunda, bem, quanto à segunda não sabia o que pensava, nem o que sentia, mas parecia-lhe cedo demais para contar com Inês para o que quer que fosse. Luís era uma pessoa estranha: já tinha passado por bastante na vida, mas, na realidade, a sua experiência com pessoas reduzia-se a quase nada. Era por isso que não percebia o que se passava consigo quando pensava em Inês. Era por isso que não percebia os suspiros secretos e solitários de Rogério. Não percebia a fixação do Sr. Ramiro em manter a campa da mulher limpa. Não percebia a preocupação de Beatriz em assegurar-se de que tanto ele como Rogério fossem felizes. Percebia que gostava deles e que queria que estivessem bem, mas os sentimentos mais profundos, aqueles que fossem para lá do óbvio eram desconhecidos.

- Acho que essa mesa já está limpa, pá, se calhar passavas para outra…

Luís acordou com o gracejo de Rogério e sorriu-lhe quase sem mexer os lábios. O amigo tinha a habitual bandeja do pequeno-almoço a três, o Sr. Ramiro já assomava à porta. Sentaram-se a fazer companhia uns aos outros, mas da boca de Luís não saiu uma palavra que fosse.

- Jovem, sente-se bem? Pela cara, pelo silêncio, pela falta de apetite… Parece-me que a saída ontem correu bem demais… – Ramiro sorriu e piscou um olho a Rogério. Luís continuou sem falar.

As nuvens dessa manhã passaram da ameaça à concretização, à hora do almoço já os céus descarregavam uma chuva contínua. Aparte isso, o ar estava absolutamente calmo, não se sentia o mínimo sopro de vento. O movimento foi muito fraco, como se quase todos os clientes temessem que o velho telhado do “Refúgio” não fosse aguentar. Luís quase agradeceu: teria de ficar até ao fecho, um dos outros empregados sentira-se mal. Já perto do fim do dia de trabalho, quando o jovem se preparava para virar a primeira cadeira de pernas para o ar, Inês entrou, abrigada apenas por um pequeno caderno – portanto, encharcada até aos ossos –, e dirigiu-se rapidamente para o balcão. Rogério preparou de imediato um chá, que Inês agradeceu.

- Acho que isto me vai saber como se estivesse a nascer… Estou gelada!

- Guarda-chuva…? – Rogério apercebeu-se da idiotice da pergunta, se a jovem se encontrava naquele estado, então obviamente não tinha com que se abrigar.

- Pois, eu sei… Olha, posso fazer uma chamada? Estou sem saldo e já me fecharam a porta do escritório… Precisava de pedir que me fossem buscar à estação.

Luís seguia a conversa ao longe, quase invisível aos olhos de Inês. Talvez sentindo os olhos do empregado na nuca, virou-se, à procura.

- Oh, olá, Luís, nem te vi aí!

- Olá… – a resposta saiu bastante mais seca do que queria, mas, felizmente, Rogério acabava de lhe estender o telefone. Continuou o que estava a fazer e tentou não prestar atenção a mais nada. Só quando ouviu o clique do auscultador se apercebeu que o tempo passara.

- Pronto, agora é uma corridinha rápida até à estação e acaba o dia! – Inês forçava um sorriso enquanto pagava o chá e via o pagamento do telefonema ser recusado.

- Nada disso. Luís, pega naquele guarda-chuva ali e leva aqui a menina até à estação. Vá, sê um cavalheiro.

Luís ficou parado, com uma cadeira suspensa no ar. Perante a relutância do jovem, Inês preparava-se para recusar gentilmente, mas o empregado não lhe deu tempo.

- Ok. Ficas à minha espera para depois fecharmos tudo?

- Se quiseres, mas não te preocupes com isso, quase não veio ninguém hoje, não há nada a fazer. Podes ir directo para casa depois.

Ouvindo isto, Luís desceu à pressa até à sala dos empregados e trocou-se. Em menos de cinco minutos, já o par saía do “Refúgio” e enfrentava a chuva, encostados um ao outro, numa espécie de bailado desajeitado e pouco à vontade. Felizmente, o guarda-chuva era grande o suficiente para abrigar ambos e, ainda mais felizmente, a estação não ficava assim tão longe do café.

- Qual é o teu comboio?

- Hum, deixa ver… É o que está na linha 2. Mas só sai daqui a 15, 20 minutos… – o comentário de Inês parecia carregar um pedido. Luís pensou que percebera…

- Posso esperar aqui contigo, faço-te companhia. Não tenho nada para fazer, como já viste… – ele sorriu-lhe como conseguiu, algo nervoso por continuar a sentir-se esquisito perto dela.

- Ei, se não te fizer diferença, seria óptimo! – ela sorriu, despreocupada – Olha ali! São os dois de ontem!

Luís voltou-se para ver os dois a que Inês se referia. Lá estavam eles, a falar sem saberem bem de quê, com a tal porta que teimava em fechar e que eles teimavam em manter aberta. O estranho parecia desconfortável com qualquer coisa que estava a ouvir, mas, quando falava, sorria com toda a franqueza. A porta começou a fechar, para não se voltar a abrir, com ele a dizer ainda qualquer coisa. Esmurrou o botão da porta, mas o comboio arrancou e limitaram-se a acenar um para o outro. O estranho baixou a cara para o chão e abanou a cabeça, depois olhou para o ar como se procurasse alguma coisa. Acabou por entrar no café da estação. Luís sorriu com a cena e voltou a confrontar Inês.

- Porque é que estás a fazer isto? - a pergunta de Inês foi como um soco de que não estava à espera e quase o deitava por terra.

- Desculpa, não percebi... – Luís quase que gaguejava.

- Acho que foi isso que ela lhe perguntou, mesmo antes da porta se fechar. Não me digas que pensavas que só tu e o Rogério se davam ao trabalho de tentar ler os lábios! – Inês sorriu-lhe, algo trocista.

- Ah, sim! – Luís quase suspirou de alívio – Pois, não sei, não consegui ver bem daqui… – quase sem se aperceber, seguiu a jovem até um banquinho mesmo ao lado da linha 2 e sentaram-se.

Nenhum dos dois saberia explicar o que aconteceu em seguida. Caíram no mais absoluto silêncio, um silêncio digno de um túmulo. Ela sentia-se algo desconfortável com aquilo, olhava em volta e para o ar, procurando algo de que falar. Ele olhava-a fixamente, como se nada mais existisse que lhe chamasse a atenção. Por fim, falou.

- Não sei o que raio se passa comigo.

Não ia dizer mais nada, mas essa frase foi o suficiente para que Inês voltasse a cabeça e o olhasse de frente. Nesse instante, olhos nos olhos, Luís teve vontade de não parar de falar.

- Por algum motivo, tu fascinas-me. Não sei mesmo o que se passa, mas sinto vontade de te tocar, de…

- Luís, eu tenho namorado. – Inês interrompeu-o – É verdade que também tenho pensado um pouco em ti, mas suponho que seja por causa do Areias. Desculpa, mas eu não estou interessada em ti. Eu namoro…

Luís ficou a olhá-la durante uns segundos, depois passou a mão pela cabeça, esfregando o cabelo como se tentasse amenizar a dor de uma pancada. Voltou a olhá-la.

- Então tenho de pedir desculpa…

- Não tem mal, não me peças desculpa, tu não sabias…

- Não. – desta vez foi Luís que a interrompeu – Tenho de pedir desculpa ao teu namorado.

Inclinou-se sobre ela e beijou-a, na boca. Não um beijo carnal ou ardente, mas um simples roçar de lábios. Inês levantou-se, vermelha. O estalo, sonoro e doloroso, que deu a Luís deixou-o a ele também vermelho. Apressou-se a entrar no comboio, deixando o jovem sozinho e à mercê dos risos alheios. O comboio arrancou pouco depois. Luís levantou-se, devagar, como se carregasse o peso do mundo aos ombros, e, quando se voltou para a saída, viu-se frente a frente com o estranho que momentos antes observara.

- É tramado, não é? – disse-lhe o estranho.

3 comentários:

O Estranho disse...

Isto começa a tornar-se ridículo! Um título! O meu reino por um título!
"O amor e um gato"?
"O refúgio"??
"Sentir no fim do ano"???
"Um + um = dois e um gato"????
Sim, estou desesperado...

Anónimo disse...

Podemos começar a votar no teu blog :p

O Refúgio.
(Sim, pk este conto tb é um refúgio psicológico para quem o está a escrever, e tb é um refúgio para quem cá o vem ler e deliciar-se.)

polegar disse...

sim, põe uma daquelas votações eheheh

tens uma ironia do caraças... adorei a cena do beijo...
escreves bem que te fartas, sacana...