11/11/2007

(Título de conto ainda por dar - parte três)

Eram cinco da tarde e o café estava vazio. Rogério limpava e arrumava copos enquanto Luís, com a cabeça longe dali, ainda que não soubesse bem onde, limpava e arrumava mesas. O dia estava limpo e luminoso, apesar da chuva dessa manhã, mas as obras, onde Areias quase morrera soterrado, tinham avançado até bem perto do “Refúgio”, o que afastara quase por completo a clientela habitual. Apenas o Sr. Ramiro se mantinha fiel, mas mesmo esse tinha saído a meio da tarde. Era o aniversário da mulher, queria levar-lhe flores à campa. Umas horas antes, piscara um olho a Rogério e a Luís quando estes mostraram vontade em acompanhá-lo, mas o café impedia-os de o fazerem. “Não se preocupem, da vossa amizade estou eu certo – dissera-lhes o idoso – e vou falar de vocês à minha Maria”. O pensamento de Luís, na verdade, estava no Sr. Ramiro e no amor que este ainda parecia sentir pela mulher, desaparecida há mais de cinco anos. Luís tinha 26 anos e nunca tinha amado. Cresceu e viveu num orfanato até aos 18 anos, altura em que teve de deixar para trás os amigos e as paredes que tão familiares lhe eram. Nesse dia, tomou a decisão de rejeitar toda e qualquer ajuda que lhe ofereceram os funcionários da instituição. Queria começar a vida a partir do zero, sentir que tudo o que viesse a conseguir tinha sido fruto do seu empenho e da sua coragem. Foi graças a essa decisão que conheceu Rogério. Os primeiros dias depois do orfanato não foram fáceis. Passava os dias em busca de alguma forma de fazer dinheiro, ajudava comerciantes nas descargas diárias em troca de comida ou de alguns trocos. As noites passava-as ao relento, aquecendo-se com cartões que encontrava no lixo. Uma semana depois, quando estava quase decidido a voltar e pedir ajuda a quem o vira crescer, deu de caras com o "Refúgio" e um sinal de “Precisa-se de empregado”. Foi amor à primeira vista.

Luís acabava de limpar a última mesa quando Rogério rasgou um sorriso de orelha a orelha ao olhar pela janela.

- Luís, pá, toma aí conta das coisas que eu vou lá atrás ver o que é preciso encomendar para amanha. Já venho. Boa sorte…

- Boa sorte? Boa sorte para quê? – Luís virou-se para o balcão, mas Rogério já tinha desaparecido pela porta da cozinha – Mas que raio…?

Inês entrou no “Refúgio”. Luís virou-se para ver quem entrava e estacou. Inês sorriu-lhe e acenou-lhe um olá com a cabeça. Sentou-se numa mesa a um canto junto à janela, “mesa 11”, pensou mecanicamente o empregado. Em gestos igualmente mecânicos, pousou o pano com que limpava as mesas, desinfectou as mãos e levou um cinzeiro à jovem.

- Não, obrigado, eu não fumo. Está tudo bem?

- Hum… Sim, está…. Olá. E contigo? Está tudo bem? Que vais querer?

Inês voltou a sorrir-lhe. Os olhos de Luís continuavam tão negros e frios como da primeira vez em que reparou neles, mas o olhar estava visivelmente mais atrapalhado.

- Sim, também está tudo bem comigo. E o nosso menino, como está? Tem dado muitos problemas?

- O nosso menino?! Ah, o Areias! Sim, ele é meiguinho. Ou isso ou então os medicamentos deixam-no completamente atordoado... – sorriram um para o outro.

- Areias? Engraçado. Engraçado e apropriado, sem dúvida…

- Sim…

Ficaram a fitar-se uns segundos, sem saber o que dizer a seguir. Claro que esses segundos pareciam tornar-se minutos, horas…

- Queria um chá, por favor. De menta.

- O quê? – Luís ainda estava perdido no olhar castanho de Inês.

- Um chá, de menta, se faz favor…

- Ah sim! Claro, vou já buscar. – Luís deu dois passos na direcção do balcão, parou e voltou-se de repente – E para comer, não queres, hum quer dizer, não quer nada?

- Não, só o chá mesmo. E podes tratar-me por tu, por favor.

Luís acenou com a cabeça, passou para trás do balcão e começou a preparar o chá. Nessa altura, surgiu Rogério, com um avental encharcado e o andar como se dançasse o bolero acelerado.

- Eh pá, ó Luís, o cano da torneira da cozinha rebentou outra vez! Podes lá ir, depressa? – nessa altura espreitou pelo café e viu Inês a observar os dois – Eh pá, desculpa lá, mas aquilo está mesmo a inundar tudo…

- Não há problema… – Luís estava visivelmente desiludido – Vou já tratar disso. Leva um chá de menta à mesa 11…

- Onde, à única mesa que está ocupada? – a graçola era uma espécie de pedido de desculpa.

- Pois, pois… – Luís virou-lhe as costas e começou a arregaçar as mangas.

Rogério pegou no bule com água quente, na chávena, numa colher, num saco de chá de menta e em dois pacotes de açúcar. Por prevenção, levou também o adoçante, já estava habituado a servir jovens como Inês.

- Olá, eu sou o Rogério. Desculpa, o Luís teve uma emergência na cozinha, não te pôde vir atender. Mas ele avisou-me que não era para cobrar nada, é por conta dele...

- Ah, ele chama-se Luís… – Inês ficou suspensa por uma fracção de segundo e depois reagiu – Espera, por conta dele? Não, não, eu quero pagar! Não é justo!

- Justo? Então se ele disse que tinha todo o prazer em oferecer o chá! Vá, não lhe faças essa desfeita… – Rogério piscou-lhe um olho e percebeu que Inês aceitara a oferta – Já agora, ele não me disse como te chamas…

- Ele não sabe, em princípio. Ainda não lho disse. Inês, chamo-me Inês.

- Ah, muito prazer. Ele fica muito contente de te conhecer, de certeza… Sabes, tenho a impressão que ele andava há uns tempos a ver se voltavas cá. Acho que não te chegou a agradecer a história do gato. Ele comentou comigo que te tinha achado muito simpática… – Rogério mentia com quantos dentes tinha. Luís não tinha comentado o que quer que fosse, apesar de ter muita vontade disso.

- Ah… Pois… ele também parece muito simpático…

- O Luís? Uma jóia de rapaz! E prestável até dizer chega! Olha, ainda agora está ali atrás na cozinha, encharcado em água, a reparar um cano. É muito habilidoso. Aprendeu tudo no orfanato. Pena que não se abre muito com as pessoas.

- Ele é órfão?

- Não se sabe. Foi abandonado em bebé. Se calhar foi pelo melhor, ninguém capaz de abandonar um bebé à nascença ia ser grande coisa como pai…

- Pois… Ele já trabalha aqui há muito tempo?

- Há oito anos. Apareceu aqui uma semana depois… depois de o meu pai morrer. Eu fiquei a tomar conta disto, mas na altura estava sozinho, a minha mãe não podia ajudar e ele entrou-me porta adentro, com uma barba enorme e a cheirar mal, e pediu-me o emprego que estava a anunciar na altura. Disse que fazia o que fosse preciso, mesmo que fosse só nas limpezas. A minha mãe saiu nesse momento do escritório do meu pai, ali nas traseiras, e ouviu tudo. Percebeu-lhe o desespero nos olhos e a fome no corpo. Mandou-o sentar e servimos-lhe um prato de comida. Depois levamo-lo à casa da D. Rosa a ver se ela tinha um quarto para alugar. Depois disso… Olha, acho que nunca nos vamos ver livres daquele, para ser sincero!

- Imagino, deve ter ficado muito… – Inês calou-se quando ia dizer a palavra “grato”. Luís voltava da cozinha, as calças encharcadas até aos joelhos.

- Pronto, já está tudo em ordem…

Rogério deixou Inês, na esperança de que Luís fosse tomar o seu lugar. O jovem, no entanto, limitou-se a descer até à sala dos empregados para trocar de roupa. Fez por nem olhar para Inês, tinha vergonha do próprio aspecto. Inês bebeu o chá, agradeceu a Rogério e pediu-lhe que agradecesse a Luís e saiu do café. Nessa altura, Luís voltou e ainda a viu por uma janela, ficando parado, na esperança de que ela talvez se tivesse esquecido de algo e fosse obrigada a voltar para trás. Não voltou.

- Chama-se Inês – disse Rogério, sorrindo perante o ar de assombro do empregado – e tu deves-me um euro pelo chá que acabaste de lhe oferecer… – piscou-lhe um olho.

3 comentários:

Anónimo disse...

Qual é a marca do café no refúgio?
:p

Beijinhos

pinky disse...

bela história que está a surgir aos passinhos...

polegar disse...

ai, ai... li dois capítulos de uma assentada.
quero mais. :))