(Título de conto ainda por dar - parte dois)
Passaram duas semanas desde que Luís ganhou um inquilino. O jovem chamou-lhe “Areias”, cedeu na vontade felina em dormir junto à sua cabeça, partilhando a mesma almofada, e habituou-se a ler-lhe histórias curtas até ele adormecer. Luís vivia quase sozinho naquele prédio de três andares, a única outra moradora era a D. Rosa, a senhoria, que vivia no rés-do-chão. Tratava-se de um edifício minúsculo, estreito e perdido entre dois prédios maiores. Daí a uns anos, quando Luís e Areias se forem embora e D. Rosa se despedir da vida, o número 117 será demolido e no seu lugar surgirá um magnífico parque de estacionamento para os trabalhadores mais importantes dos prédios ao lado… Mas, por agora, para humanos e gato, o 117 é sinónimo de “casa”.
…
Inês ainda não voltou ao “Refúgio” desde que devolveu as chaves de casa a Luís, mas este, não o admitindo, voltava a cabeça cada vez que a porta do café se abria. Não sabia o nome dela, não sabia onde morava, quem era, apenas o que fazia, e mesmo isso não era certo. Lembrava-se bem das suas palavras, “trabalho num escritório de advogados”, mas isso não significava que fosse advogada, podia ser secretária ou recepcionista, ou… Areias prestou atenção durante algumas noites. Depois começou a ignorar e adormecia, já seguro de que o amigo não lhe ia ler nenhuma história. Luís deitava-se na cama, os braços atrás da cabeça, a olhar para as manchas de humidade no tecto e pensava em Inês. Não se conseguia lembrar da cara dela. Por algum motivo, a única coisa que conseguiu memorizar foram os seus olhos, o tal brilho castanho que lhe parecera tão estranho. Não tardava a adormecer, cansado do dia de passos apressados enquanto servia as mesmas caras de sempre. A almofada era, então, partilhada, de um lado um jovem a ressonar, do outro um gato a ronronar.
…
O dia amanheceu chuvoso. O Inverno aproximava-se, apesar de quase não se ter dado pelo Outono. Luís abriu o “Refúgio”, recebeu os fornecedores de bebidas e preparou as máquinas. Rogério chegou quando faltavam 30 minutos para o café abrir. Como dono e herdeiro, preferia trabalhar desde a abertura até ao fecho, mas a amizade com Luís proporcionava-lhe mais uns minutos de sono.
- Então, correu tudo bem? Trouxeram tudo, desta vez?
- Sim. – respondeu-lhe Luís – Já moí o café, as máquinas já estão ligadas, as mesas limpas e a porta pronta a abrir. Vamos a isso?
- Claro!
Rogério e Luís prepararam torradas, sumo de laranja e café. Sentaram-se a uma mesa num canto, a tomar o pequeno-almoço, a ler os jornais e a conversar. Este ritual começara anos antes e mantinha-se, quase religiosamente, sempre que Luís tinha de fazer o turno da manhã.
- Olha, ontem ao fim da tarde esteve cá aquela tipa da semana passada… – começou Rogério.
- Qual tipa? – Luís estava genuinamente confuso.
- Oh, qual tipa… Pensas que não reparei como estacaste a olhar para ela…
- Mas estás a falar de qu… Espera… A advogada? – a escuridão dos olhos do jovem pareceu iluminar-se, por momentos.
- Sim, a do gato. Veio cá tomar café…
- E não me disseste nada?!
- Luís, pá, foi ontem ao fim da tarde, estou a dizer-te agora… – por trás do jornal, Rogério exibia um riso trocista de orelha a orelha.
- E então??
- E então? E então o quê, pá? Tomou café, pagou e saiu. Que querias que fizesse? Ainda perguntei se queria umas bolachinhas, mas ela nada… – Rogério começava a rir-se mais abertamente.
- Oh!
Luís levantou-se e espreitou pela janela. O relógio da loja em frente mostrava que faltavam 5 minutos para a hora de abertura, mas ao fundo da rua já se aproximava o primeiro cliente.
- Vem aí o Sr. Ramiro…
- O costume… Abre-lhe a porta e ele que se sente aqui connosco.
- Bom dia, Sr. Ramiro. Então como está? Entre, entre, saia da chuva. – Ramiro era um velhote nos seus 65 anos, o cabelo completamente branco tapado por uma boina preta. Trazia um guarda-chuva fechado pendurado no braço. Sacudiu as gotas de chuva presas ao casaco, tirou a boina e sentou-se ao lado de Rogério.
- Então, jovens, já começaram sem mim? A juventude é sempre a mesma coisa, sempre cheia de pressa com medo de morrer a dormir! Vá, quem é que vai já começar a trabalhar e me vai servir o cafezinho? Hum, torradas hoje, que bom… – Ramiro era um dos mais antigos frequentadores do “Refúgio”, quase desde a inauguração, 30 anos antes. Era um conhecido do pai de Rogério e lembrava-se perfeitamente de onde tinha vindo a ideia do nome do café. A casa onde agora os três tomavam calmamente o pequeno-almoço tinha visto muito luta enquanto ponto de encontro de jovens de ideais comunistas, na altura do Estado Novo. Ramiro nunca chegou a ter a coragem de aderir também ele à luta activa, mas por diversas vezes guardou em casa exemplares do “Avante”, à espera de serem distribuídos na clandestinidade. Conhecia de cor o nome de todos os que se esconderam entre as quatro paredes do “Refúgio” e aquele sítio trazia-lhe recordações da juventude, de um tempo antes de ser viúvo. Via em Rogério e em Luís os rostos dos seus amigos desse passado, mas eram rostos mais calmos, rostos que não passaram pela opressão, olhos que não tiveram de disfarçar o medo e, ao mesmo tempo, a força de vontade para mudar um país.
- Quer leite, Sr. Ramiro? – a voz, agora calma, de Luís trouxe-o de volta.
- Sim, pode ser… Obrigado, rapaz, agora senta-te e acaba lá de tomar o café.
- Ó Sr. Ramiro, nem lhe diga nada que ele ainda há pouco me ia bater!
- Ui, ai sim? E que é que você lhe fez? – Ramiro já conhecia bem as discussões pouco inflamadas dos dois amigos.
- Então não é que me esqueci de lhe dizer que ontem esteve cá a namorada dele?
Luís sentia-se aquecer por dentro, como uma caldeira prestes a rebentar. Mantinha-se sentado, de olhos fixos no jornal, mas cada vez mais perto de explodir.
- Ai, você namora? Pois faz muito bem. Tem é de ver se sorri mais com os olhos. Veja lá o que lhe digo, elas querem é ver sorrir com os olhos, cá isso de sorrir com os dentes pode correr mal, principalmente na minha idade…
Nenhum dos três conseguiu deixar de rir e o primeiro cliente que entrou encontrou três amigos bem-dispostos. Luís e Rogério assumiram as suas posições, Ramiro continuou a ler o jornal e a recordar os tempos em que o “Refúgio” era realmente um refúgio. Luís pensou se nesse dia veria Inês, apesar de se referir a ela como a Advogada. Rogério não pensou em nada, preparou pão para as torradas.
…
Inês não apareceu.
3 comentários:
Continua a necessidade de título...
Os rastos de informação da vida real transformadas num conto :p
está fantástica, a história! me gusta! titulos...hummmm "encontros do acaso"? "um gato chamado destino"? "vidas escritas"? se me lembrar de mais, digo.
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