Conto em Cabo Verde - penúltima parte
- Uma hora. Mais uma hora e tudo se precipita. – Júlio remexe o saco; passa por óculos de sol, livro e maços de lenços – De que é que estou à procura? – pára um instante – De nada, quero é guardar o que tenho.
Apesar do travessão, esta frase não foi dita, foi, sim, pensada, sentida, acima de tudo. Este é o último dia das férias que passou em Cabo Verde, ironicamente, o dia mais azul e limpo da semana. O vento sopra, como de costume, mas a falta de nuvens faz com que o calor que se imagina típico de África se faça sentir com mais intensidade. É de manhã cedo, tão cedo que os pais do jovem provavelmente ainda nem acordaram. Júlio está num frenesim, amachuca roupa, como se fossem pedaços de papel, e atira-a para a mala. Tem o olhar fixo naquilo que está a fazer, mas, não o admitindo, pensa no que se aproxima: o adeus a Eva, perdão, a Diana, é do hábito. Sabe que isso é inevitável, como se sentisse que a cada movimento dos ponteiros do relógio, que hoje em dia são os píxeis do telemóvel, Diana se afasta mais e mais. Pensando melhor, Adão e Eva dá uma ideia muito melhor de amor ingénuo e de tragédia inevitável do que Júlio e Diana, por isso, voltemos aos nomes ficcionais do casal, se não se importam. Adão, portanto, está a arrumar tudo para o regresso a Portugal, mais precisamente para o Porto, enquanto que Eva, se não está, deveria estar a preparar o regresso também a Portugal, mas mais precisamente para Lisboa. A distância, à partida, não seria um problema, não, o problema é algo mais complexo. Adão sabe o nome verdadeiro de Eva e sabe que é de Lisboa, a questão é que, à excepção de algumas marcas de nascença e sinais em sítios mais recônditos do corpo, não sabe mais nada sobre a jovem. Não se imagina, claro está, a percorrer cada rua da capital a perguntar a quem quer que passe se conhece uma rapariga chamada Diana que tem uma marca de nascença em forma de cogumelo logo abaixo da nádega esquerda... Adão esvazia por completo a mente, não pensa em nada porque sabe que não pode pensar o que está a sentir: ama Eva, ainda que não a conheça, ainda que se tenha determinado a não se apaixonar por ela, Adão ama Eva de uma forma quase infantil, como se amasse o céu azul simplesmente por ele existir. A única coisa que lhe passa pela cabeça é “Mais uma hora…”
E tem razão. Depois dessa hora, em que os pais lhe bateram à porta e se admiraram de o filho já estar completamente pronto para sair, tudo se precipita a uma velocidade desconcertante: o pequeno-almoço, as últimas despedidas ao hotel e aos empregados, o check-out, as malas atiradas para a camioneta ferrugenta que os trouxe ao hotel, que os levou a passear pela ilha e que agora arranca para os levar de volta ao aeroporto, o check-in, a revista, a espera pelo avião, o embarque, descolagem, o Atlântico imperceptível por baixo das nuvens. Só agora o tempo parece abrandar, Adão adormeceu nas primeiras três de quatro horas de viagem. Acorda sobressaltado, atirado para o lado pela turbulência. Sente a mãe apertar-lhe a mão com força, com medo. Balbucia-lhe, de forma quase automática, que se acalme, que foi só um solavanco, nada de mais. Pestaneja o sono dos olhos e espreita pela janela. É a primeira vez que Eva, imediatamente atrás, o vê mexer-se desde que o avião levantou voo. Apetece-lhe debruçar-se sobre o assento do jovem e dar-lhe um beijo na cara, perguntar se está tudo bem, mas não o faz. Também ela sente que o ama, mas, tal como ele, recusa-se a pensá-lo, optando por racionalizar o que não há como racionalizar. Classifica, cataloga o que sente como uma atracção física, só e apenas, daquelas que se sente todos os dias. Também ela espreita pela janela. Acabam por adormecer ao mesmo tempo, próximos, como na noite anterior, mas agora separados por roupa e por uma cadeira de avião. Chegam a Portugal.
Eva segue com a mãe para procurarem as malas, Adão, logo atrás, quase puxa os pais para se despacharem, ainda têm outro voo à espera. O tapete começa a rodar, ouvem-se os primeiros tombos, as primeiras malas, os primeiros “Olha, é a nossa!”, mas as de Adão e Eva, e dos respectivos familiares, ainda demoram, tanto que Adão quase fica branco quando a mãe de Eva se vira para ele e lhe diz, com um sorriso:
- Já viu, querem estragar-nos as férias, vamos ser mesmo os últimos!
Adão sorri de volta e acena com a cabeça, incapaz de soletrar uma palavra que seja, ao mesmo tempo que Eva engole em seco e começa a corar. Ambos respiram de alívio quando as malas finalmente aparecem e, num movimento digno de natação sincronizada, precipitam-se ao encontro delas, deixando os pais perplexos. Adão tira a sua mala e a dos pais, Eva faz o mesmo em relação à sua, mas a da mãe é um pouco pesada de mais para os seus braços. De repente, sente o corpo de Adão encostado ao seu, mais uma vez, a mão dele sobre a dela, a boca encostada ao ouvido enquanto o jovem lhe sussurra para ter calma, que ele trata disso. Por momentos, estão no quarto de hotel de Adão, ele a segurar-lhe a mão com força e ela a encostar a cabeça no ombro dele. Despertam de imediato, lembrando-se de onde estão e de com quem estão. Feliz e inexplicavelmente, pensam ambos, os progenitores conversam animadamente entre eles, falando do que gostaram mais, de como gostavam de lá voltar e outras palavras de circunstância.
- Diana… – Adão assume uma postura grave, como se fosse dizer algo que faria o mundo desabar nesse preciso momento, mas, quando a jovem se vira para o enfrentar, diz simplesmente – foi… foi bom conhecer-te. Espero que consigas... bem, que consigas recuperar da morte do teu pai e que…
- Júlio, por favor não digas mais nada.
Adão consente com a cabeça, com os olhos a dizerem adeus. Arrasta as malas pelas rodas e os próprios pés pelo chão e avança na direcção dos pais. Eva fica para trás, mas segue logo a seguir e ainda consegue ouvi-lo dizer à mãe que os desculpe, mas que ainda precisam de apanhar outro avião de regresso. Ainda chega a tempo de dizer um último adeus ao trio, mas já nem conseguiu ver os olhos de Adão.
- Que rapaz tão simpático, não achas? Tens de arranjar um namorado assim! – brinca a mãe de Eva.
- Vamos? – é a única palavra que sai da boca de Eva desde o aeroporto até casa.
…
O avião com destino ao Porto descola, iniciando uma subida que dá a sensação de não chegar a concluir, começando quase de seguida a descer. A viagem de avião pode ser encarada como um capricho, mas foi apenas uma questão de conforto e de rapidez, principalmente se se pensar nas três horas de inferno de Adão no Alfa pendular… Em meia hora, chegam ao Aeroporto Sá Carneiro, levantam as malas e dirigem-se para a entrada. O jovem faz sinal a um táxi. Vira-se para os pais.
- Vamos? – é a única palavra que sai da boca de Adão desde o aeroporto até casa.
3 comentários:
ouve-se o rufar de tambores. é o meu coração, a dançar de antecipação :)
Por vezes é tão difícil dizer a alguém, o quanto os queremos..... Bj
belo fim para nos mostrar o que n�o devemos fazer.
a omiss�o de palavras deixa-nos sempre a pensar no " e se"....
muitas vezes o que deixamos de dizer e de fazer faz toda a diferen�a, e se muito podemos perder por falarmos, mais de perde por n�o falarmos, ficamos sempre sem saber se o desfecho seria diferente e mais feliz.
amei a hist�ria!
nextttttttttttttttttttt!
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