Conto em Cabo Verde - parte VIII
- O que é que estavas a ler de tarde? – o dia já passou e já estamos na noite seguinte. Adão e Eva, nomes unidos por uma fé inexplicável, estão nus, tal como, supostamente, os seus homólogos, milénios antes. Mas não estão no Paraíso, estão no quarto de Adão. É Eva quem pergunta.
- Como sabes que estive a ler?
- Oh, vi-te na varanda…
Adão franze o sobrolho.
- Andas a espiar-me?
- Oh, não sejas parvo! Simplesmente ia a passar e reparei. Até foi a minha mãe que chamou a atenção para o “meu amigo”…
- Ah, ela já percebeu que a filha se mete na cama com um desconhecido todas as noites? – abre um sorriso desafiador.
- Oh, não sejas parvo!
- Que engraçado, estás a ficar tão nervosa que não paras de dizer “oh”…
- Oh!
Eva, numa birra fingida, volta-se na cama e fica de costas para Adão, que se afasta ligeiramente para observar melhor o corpo da jovem diante dele. Conta-lhe os fios de cabelo da nuca, desce-lhe pela linha da coluna, rejubila com o redondo das nádegas e detém-se numa marca de nascimento da coxa direita de Eva.
- Estava a ler o “Cemitério de Pianos”, já tinhas visto. – Adão aproxima-se de Eva e abraça-a pelas costas.
- Mentiroso. Eu reparei que era uma folha solta.
- Ah, isso… – Adão larga-a outra vez e vira-se de barriga para cima.
- O que era? Parecias muito sério a …
- Olha, não quero falar nisso, ok? Desculpa, mas não vás por aí.
Eva engole em seco. O tom foi mais severo do que esperava. Os seus pensamentos precipitam-se numa cascata de hipóteses, mas tornou-se mais do que óbvio que não é suposto fazer perguntas. Está quase a adormecer quando:
- É uma carta.
- Desculpa? – a sua voz feminina soa ainda mais fraca com o sono.
- O papel que me viste a ler. É uma carta.
- De quem, da tua namorada? – a pergunta, numa voz fraca e lenta, tem segundas intenções óbvias…
- Subtil, sem dúvida. Não, eu não namoro. E a carta, nem fui eu que escrevi, nem foi escrita para mim.
- Mas então…?
- Foi o meu tio que escreveu. Para o avô dele, meu bisavô.
- E como é que és tu que a tens? – Eva já mal consegue abrir a boca.
- Porque ele escreveu-a pouco tempo depois de o meu bisavô morrer. A minha mãe soube que estava grávida de mim uns dois ou três meses depois do funeral. Segundo o meu tio, o meu nome magnífico foi uma homenagem. A minha avó desatou a chorar quando soube.
A pergunta de Eva devia ser a mais óbvia, mas, em vez de perguntar qual era o tal nome magnífico, balbucia apenas:
- Mas por que é que o teu tio te deu a cart… – a pergunta já não é feita até ao fim. Eva adormece.
Adão deixa-a dormir e fica sozinho, entregue à carta. O tio deu-lha quando fez dezoito anos, dando a entender que achava que só então Adão teria maturidade para entender o que lhe queria transmitir. Como todos os adolescentes, os dezoito anos do jovem foram conturbados. De forma quase clássica, a relação com os pais, e principalmente com a mãe, não era fácil. O tio compreendia-o, as discussões que tivera com a irmã, enquanto cresciam, davam-lhe uma noção perfeita do que se passava. Mas insistia com ele que devia ter paciência. E então, um dia, deu-lhe a carta. Não eram mais do que algumas linhas, mas, mal as leu, Adão percebeu imediatamente a intenção do tio.
“Adeus, avô. Morreste, não sei com que idade. Nunca te conheci bem, por culpa minha; sabia o teu nome e o que fazias, mas não soube e nunca saberei agora quem eras. Lembro-me que uma vez me bateste e eu odiei-te por isso. Lembro-me que nunca te procurei para nada e tu nunca me deste nada. Lembro-me que nos sorríamos quase por obrigação nas poucas vezes em que nos encontrávamos, invariavelmente no Natal. Mas nunca mais sorriremos um para o outro, mesmo que por obrigação. Vi-te, nos últimos dias, deitado na cama do hospital, com os olhos e a pele amarelecidos e os pés inchados. Eram os teus últimos dias, avô, soube-o no momento em que te vi a lutar para te ergueres na cama e olhar-me de frente. Morreste, já todos o esperávamos. Carreguei-te, avô, o teu corpo inerte dentro do caixão frio, brutalmente pesado, pisou-me a palma da mão. Os teus netos choraram, avô, os teus filhos gritaram, avô, e eu não percebia, não sentia, não chorava. E então pregaram a tampa que te cobriu e ainda hoje te cobre, avô. E levaram-te e pousaram-te e taparam-te com terra, avô, e então chorei, como o mais novo dos meus primos, os teus netos, agarrados uns aos outros porque nunca mais te veríamos, avô, e eu nunca te iria conhecer. Adeus, avô, perdoa-me.”
Adão fecha os olhos e adormece. Eva tem um braço pousado no peito dele. O jovem começa a sonhar. Vê o tio, sentado num café, a conversar com o bisavô, viu-o em fotografias, o homem de quem herdou o nome. Numa mesa, um pouco atrás destes, está Eva, sozinha. Adão serve-lhe um café. Não trocam palavras, sorrisos ou olhares. São desconhecidos. Amanhã é o penúltimo dia em Cabo Verde.
1 comentário:
liiiiiiiiindo! puseste-me com os olhos marejados de lágrimas, sacana!
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