22/06/2006

diálogo sob a lua de Poe

Ele abre a porta para a varanda do bar flutuante. A noite está fria, não tem o casaco vestido, mas apeteceu-lhe sair um pouco da multidão, da festa. Debruça-se sobre o corrimão, os olhos postos no rio, na outra margem, no horizonte onde brilha, ao longe, uma lua amarela, melancólica, daquelas que assombram os contos de Poe. Pousa a cerveja, pega no maço de cigarros e acende um. Enche os pulmões e suspende a respiração. Fica quieto, a olhar para o fumo que sobe do cigarro, a porta abre-se atrás de si. Expira, não se volta, reconhece o perfume...

Ela debruça-se também sobre o corrimão, quase encostada a ele.

- Começaste a fumar! – admira-se ela.

Ele puxa mais uma passa do cigarro, trava.

- Hum-um… – responde ele.

Calam-se.

- Está frio… – tenta ela.

- Hum-um… – responde ele.

Calam-se.

- Está tudo bem contigo? – tenta ela, mais uma vez.

- Hum-um… – responde ele, mais uma vez.

- Importas-te de me responder em vez de te fazeres de vítima?! – quase berra ela.

Ele vira-se, devagar, fita-a nos olhos – ela desvia o olhar –, puxa mais uma golfada de fumo, vira a cara para expirar e começa, calmamente:

- Eu não me estou a fazer de vítima. Nunca gostei de me fazer de vítima, tu sabes isso. Aliás, se houve alguma vítima no que nos aconteceu, foste tu. Fui eu que acabei, fui eu que me afastei, fui eu o culpado de não ter dado certo. Não me estou a fazer de vítima, só não sei o que dizer.

Calam-se.

- Ouve, – recomeça ele – eu lamento o que fiz. Passaste um mau bocado por minha causa. Mas aproveitaste bem demais o teu direito de me magoar. Nunca, por uma vez sequer, te traí, nem a tua amizade, nem o teu amor. Nunca, acredites ou não. É claro que olhava para outras mulheres, é claro que as desejava, mas nunca fiz o que quer que seja com essas mulheres. No final do dia, era contigo que eu estava, era contigo que confidenciava, era contigo que dormia. Estraguei tudo, ok, mas tu não tinhas o direito de me tratar como lixo, eu nunca te fiz isso, nem quando acabei tudo. Era isto que querias ouvir?

Ele coça a barba, ela afaga os braços, arrepiados. Ele espreita para dentro do bar, abana a cabeça.

- Sempre achei que ias acabar por ficar com um idiota, um parvalhão, e aquele cretino que está lá dentro, meio bêbedo, a atirar-se à nossa amiga, a tua grande amiga – lembras-te? – prova que tinha razão…

Dá uma última passa, atira a ponta para o rio, pega na cerveja e vira-se, na direcção da porta.

- Tenho pena de ti. – começa ele.

- Não preciso que tenh-

- Pára! Pára, eu reformulo. Lamento. Lamento o teu azar com os homens. Só te calham idiotas. E lamento também que isso te tenha tornado numa cabra…

Ele abre a porta, volta à festa.

Ela fica sozinha, debaixo de uma lua que, mal sabe ela, pertence a Poe...

4 comentários:

Anónimo disse...

o que dizer quando as palavras nos comem os olhos?
maravilhoso.

Anónimo disse...

Comer os olhos? Acho que às vezes me come a alma...
Obrigado!

Anónimo disse...

amargura leva a amargura, que as pessoas não conseguirem engolir o orgulho e admitir os seus erros e pedir desculpas, se um faz meio caminho, as coisas já estam facilitadas, a ofensa não leva a lado nenhum.
claro que ninguém tem sangue de barata, e qd somos atacados reagimos, mas se há uma mão estendida por q não agarra-la.
ok estou em discusos tontos, mas sinceramente acho k era tudo tão mais fácil se as pessoas falassem francamente e sem barreiras.
enfim...
maravilhoso diálogo, real mais real não há!

Anónimo disse...

Teste depois de queixa descafeínada...