14/09/2005

Fogo e água

O cheiro a papel queimado faz-me comichão no nariz enquanto o fumo se espalha à minha volta. Nesta lareira, onde outrora arderam velas, acesas para criar ambiente propício ao amor, arde um bloco cujas linhas contêm a minha alma. Parte dela, pelo menos. Há um ano que não lhe mexia. Então, como agora, estava quase a fazer anos, mas então, ao contrário de agora, aquele bloco que agora arde era tudo a que me agarrava para não perder a alma. Lembro-me de uma das frases que agora arde – “Muita coisa muda num ano” – e sorrio ao pensar que tenho ouvido essa frase vezes sem conta neste último ano. Uma lágrima escorre-me pela cara, mas apresso-me a limpá-la. Sei que tenho o fogo reflectido na água dos meus olhos, mesmo depois de ele se apagar. Espalho as cinzas, para que pareça que nada ardeu recentemente e devolvo os vasos ao seu respectivo lugar. Agora há uma bola que bate contra a parede. Estou descalço, na garagem, com o fogo e as lágrimas ainda nos olhos e chuto uma bola com toda a força contra a parede, uma e outra e outra vez, com a certeza de que não resolvo nada, mas com a necessidade de apagar o fogo dos olhos. Paro. Não sei se por cansaço das pernas, se pelo sangue que escorre agora do sítio onde devia estar uma unha. Mas paro apenas por um momento, ainda sinto demasiado fogo a consumir-me por dentro, um fogo que só se vê pelos meus olhos, porque o meu rosto é uma pedra e a minha voz nada diz sobre mim. Encolho-me, no chão, as mãos atrás da cabeça, estou desarmado e de olhos fechados, mas levanto-me logo em seguida e agora agito os braços, desferindo murros no ar até que ele caia, inerte, sem sentidos, porque o odeio, porque o ar atiça o fogo.

Deito-me na banheira, cheia de água fria que me arrepia a pele. Só tenho a cabeça e os dedos dos pés de fora. Aqui debaixo não há ar, aqui debaixo não há fogo. Encosto a cabeça para trás, de olhos fechados. Começo a afundar-me. Sinto que me afundo cada vez mais, à medida que bolhinhas de ar se escapam pelo nariz. O calor que agora sinto nos pulmões não é do fogo que arde sem se ver, é do meu corpo que grita por ar. Mas eu não posso respirar, aqui debaixo não há ar. Chego ao fundo, sinto-o nas costas, enquanto as pernas se debatem. Não, ainda não é altura de regressar, se é que isso vai acontecer. Aqui não há peixes nem algas. Não há tubarões, espero eu. Não, aqui não há nada, só o meu corpo e água. E então abro os olhos. Consigo ver movimento à superfície, mas ninguém se apercebe de que estou aqui. Sinto a água, que agora entra nos pulmões, já não preciso de ar, já não tenho fogo reflectido nos olhos, agora sim, estou em paz. E já não sei se quero voltar. Mas uma mão vem na minha direcção e agita-se na água como se me procurasse. Hesito. Estico-me para a agarrar e ela puxa-me para fora.

Acordo, encharcado em suor. Adormeci, debruçado sobre a secretária, com os dedos ainda cheios de fuligem. Estive a sonhar com a vida e agora preciso de tomar banho. Olho para o lado. Sorrio quando vejo a Tv7dias aberta na página 109. Fico feliz. Olho para o outro lado. Vejo a capa de imitação de cabedal que arranquei de um caderno que se esvaiu em fumo. Fico... vivo.

Vai ficar tudo bem.

(Capicua, nem toda a sabedoria do mundo faria com que dispensasse os teus comentários)

13 comentários:

polegar disse...

queimaste-me os dedos com o fogo no caderno, queimaste-me os pulmões com a banheira. queimaste-me os olhos com a tv7dias. estúpido, estou a chorar.
seja o que for que te tenha puxado, a que te tenhas agarrado, para que saibas: mesmo que a minha mão não chegue aí ao fundo, estará esticada a puxar-te a abanar-te. nem que seja para veres a TV7dias...

n. disse...

brutal esse teu sonho e muito marcante este teu texto...
é verdade que apenas num ano tanta coisa muda, mas em mto menos tempo tb muita coisa muda e dps ter percebido isso acho q é preciso fazer uma série de lutos na nossa vida, para sobrevivermos melhor.

Anónimo disse...

Gosto da maneira como escreves, estranho! Os meus olhos a ler as letras deste texto e o meu cérebro a fazer uma curta metragem como se conhecesse esta lareira, este caderno, esta secretária... Incrível a maneira como acabas o texto...eis que derrepente nos chamas para o mundo real: TV7dias!

pinky disse...

esses pesadelos irão dar lugar a sonhos doces....you´ll see, o tempo tudo cura e tudo transforma, é acreditares nisso.

Anónimo disse...

Estou hirta, estou gelada, estou com suores frios, estou com o coração aos pulos, e estou sem saber o que escrever há meia hora!
Queria ser a mão que te puxa e não te deixa afundar. Também eu já tive mãos que me puxaram e não me deixaram não querer respirar.
Fico contente ao saber do teu sorriso com a pag. 109 da Tv7Dias, pois apesar de ele não ser por mim, também lá estou, e mesmo que não sirva para mais nada já valeu a pena!
Há um ano atrás também tudo era diferente para mim, também há uma ano que luto contra uma ferida que teima em não sarar e já perdi a conta ás vezes que lhe tirei a crosta e a exponho! Por favor continua a sorrir, nem que seja com os olhos cheios de água como tenho os meus agora!
Um abraço do TAMANHO DO MUNDO, muito apertadiiiiiiiiiiiinho!
B.

O Estranho disse...

Eia!Olá a todos...
polegar: estúpido, eu?! Que culpa tenho que sejas piegas? Tens que enrijar! Faz-te homem! Olha bem para mim, seria incapaz de chorar...;)
n.: hi! És um sacana! Fiquei com a pulga atrás da orelha sobre quem serias, mas que desconfiei, desconfiei! Bem-vindo de novo...(claro que se estiver enganado estou a fazer uma grande figura de idiota...)
capicua: O mundo real... Isso era nós agora estarmos a voltar ao Isai, a comprar as mochilas no Continente e os cadernos e as canetas e a pensar "Nina!!!" eheheheh
pinky: hum, acho que sim, o tempo acabapor curar e transformar tudo, mas é uma seca, demora demasiado tempo! Mas enfim, vou tendo sonhos doces acordado, já não é mau!;) Olá!
B: Cara B, realmente não te conhecia, mas o sorriso em relação à página 109 refere-se ao sucesso da polegar, que, claro, está ligado ao sucesso da peça, por isso estende-se também a ti! Quanto a ser a mão que me puxa, só aqui entre nós que ninguém nos lê, se a palma da mão é a felicidade na vida (entrando no campo do simbolismo, para dar a ideia de que sou um intelectualóide do caraças!:) ), então os dedos terão que ser as pessoas que conduzem a essa felicidade. Ora, como a polegar, só com o nome, foi esperta e gulosa e apoderou-se logo de um dedo, vou ter que incluir mais gente nesse dedo e por isso, pimba, lá estás tu!:) Ah, e cada vez mais acho que a pessoa que não me deixa sarar a ferida merece é ficar com o dedo do meio...

Um abraço e obrigado a todos.

n. disse...

hi! não estás enganado.

Anónimo disse...

Hoje foste tu que me deixaste um saboroso sorriso (e como estava a precisar dele!!).

Fico contente por te sentir com outra força.
Obrigada, Beijos, B.

Joana disse...

Olá estranho. é a minha primeira vez por aqui...com licença, vou entrando :)
Apesar do tom melancólico do texto, o fogo e a água são elementos purificadores e só por isso pareces estar em bom caminho :) Muito bonito o texto. Fiquei com o reflexo dessa lareira nos teus olhos, nos meus.
beijinho

pinky disse...

espero que o pesadelo se tenha transformado em sonho e o sonho em doce realidade e que seja essa a razão da tua ausência.
já estás a deixar saudades!

.j. disse...

estranhamente, algo me diz que o dono deste blogue HOJE merece os parabéns ;)

beijinho da filha do Outono,
.j.

Anónimo disse...

Por onde andas?
Vá lá, dá o "ar da tua graça"!
Beijo, B.

O Estranho disse...

Eh pá, este pessoal deve estar todo no desemprego!!! Cambada de domésticos... :)
n. - ;)
B. - Então com a peça e a Tv7dias e a polegar a tirar fotos a pernas e ainda são precisos motivos para sorrir???
mood - Vá entrando, vá entrando e sente-se. Vai um cházinho? E aquelas tostinhas que quando se começa a comer não se consegue parar? :) Bem-vinda e obrigado pelo comentário.
pinky - Oh, os sonhos (estes pelo menos) não se tornam realidade! É uma chatice, mas pronto, já me contento com ter unhas!
.joana. - Joanita, Joanita, esta-mos sempre a adiar o jantar da curta e um dia destes tu foges para Lisboa (ah pois é, eu procuro estar sempre informado acerca das pessoas de que gosto!);)
B. - Não sei por onde ando, mas sei que ando como deus quer. E viva jesus! Não há coisa mai'linda c'a fé! Acredita em jesus! Acredita em jesus, que t'ama e é lindo! (Acho que também tenho de fazer um scandisk ao cérebro: de vez em quando aparecem-me assim uns pop-ups estranhos...)