09/12/2004

Serei ninguém

Não somos um mero amontoado de ossos. Não somos cartilagens, nem carne, nem pele, nem unhas. Não somos a roupa que vestimos ou o carro que guiamos. Nada do que é palpável define o nosso ser. Excepto talvez os olhos... Desses, é impossível fugir!
Tenho a cabeça cheia de Poe e de Vergílio Ferreira e temo que o meu corpo começa a imitar a metamorfose do Kafka. Em breve ninguém me reconhecerá. Ninguém terá coragem de ver os meus olhos. Ninguém conseguirá ouvir o que digo e serei incapaz de escrever. Em breve, serei realmente ninguém. Em breve, vaguearei por este mundo entregue aos bichos e serei eu próprio. Irei fazer medo a alguns, outros respeitar-me-ão. Ninguém me reconhecerá. Ninguém saberá que sou eu, pois eu serei ninguém e ao ser ninguém, serei toda a gente.
Ninguém é aquilo que mostra, mostramos aquilo que queremos ser e é tudo. Seria complicado demais justificar o que somos, mesmo não sendo precisa qualquer justificação. Somos ninguém porque não agimos como somos. Esperamos que o mundo nos aceite, mostrando apenas um pouco daquilo que somos. Temos toda liberdade para falar, mostrar os olhos, mas temos medo e só mostramos o reflexo dos outros. Já quase ninguém abraça a pessoa amada (já quase não há amor!) e se deixa perder na alma que tem à frente, essas janelas do infinito em que tentamos ver a nossa figura, envolta numa aura cor-de-rosa, rodeada de flores e imagens bonitas, janelas feitas da mais pura água que existe e que seria capaz de nos lavar todas as dores e imperfeições do ser que não somos.
Serei ninguém. Misturar-me-ei com todos os outros ninguém e juntos seremos felizes até que a morte nos separe e então cada um seguirá o seu caminho. Na morte, seremos diferentes, teremos diferentes valores e crenças e paraísos e reencarnações e cada um terá o seu pós-morte, pois a alma, o nosso verdadeiro EU, criará esse pós-morte único e intransmissível. Só então seremos alguém. Seremos o nosso verdadeiro EU!

2 comentários:

Damon disse...

o comentário jocoso:

«ninguém, ninguém, poderá mudar o mundo...», como diz o grande Mark Paul...

Damon disse...

o comentário sério:

talvez: ninguém + ninguém = alguém.
não é fácil comentar o texto e isso não é necessariamente negativo. não é fácil recorrer a frases feitas para negar o inegável. «Mas eu ainda posso ser alguém». Tu também.