É a vida... ou a ausência dela - Parte V
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“Tenho 23 anos. Para uma criança, sou velho, para um adulto sou novo. Nem sei como me sinto, se demasiado novo para morrer, se já velho e cansado para continuar a viver. Só sei que assim não posso continuar. Assim, não!” Daniel continua a tentar ignorar o casal vizinho, mesmo quando o rapaz espreita pelo vidro. Este quer que o vejam; é um orgulho para ele estar com uma mulher, em pleno acto sexual - mesmo que não sentindo nada por ela - enquanto que o outro está sozinho.
- Bom, tenho que me decidir. Vou manter o plano: numa qualquer curva apertada, acelero o suficiente para me despistar. Assim vai parecer um acidente e ninguém fica com remorsos – no entanto, Daniel hesita - Não há razão para viver… ou será que…?
Daniel nunca conseguirá explicar o que aconteceu nesse momento. De súbito, desata a rir. Há algo dentro dele, algo que o tem andado a remoer e finalmente agora sabe o que é. A grande verdade que lhe escapara e que, no fundo, é tão simples. “Não são precisos motivos para viver. Não podemos esperar que algo nos venha tirar da cama para enfrentar a vida. A vida é feita de altos e baixos. De desilusões, de angústias, de tristezas, mas também de alegrias, de sorrisos, de elogios, de humor, de felicidade, de amizade, de exultação, de frenesim, de gargalhadas, de abraços, de beijos, de olhos e de amor, inevitavelmente, de amor. Como posso ter sido tão idiota?!” O rapaz que há pouco espreitava pelo vidro e via um Daniel triste e sisudo, vê agora um Daniel a rir com vontade e, na sua estúpida e ridiculamente baixa auto-estima, pensa que Daniel se ri dele e não consegue continuar com o que estava a fazer…
É um outro Daniel que agora mete a chave na ignição. Com cuidado, faz-se à estrada, com os limpa pára-brisas a moverem-se vagarosamente de um lado para o outro. A tempestade acalmara gradualmente, mas ainda chovia e a estrada estava molhada. O carro avança devagar por agora. “É melhor não arriscar. Com este tempo, se me aparece alguma coisa pela frente…” Ainda demora algum tempo para ir de casa de Daniel até à praia e é preciso ir por uma via rápida. “Pronto, acho que vou acelerar um bocado mais. Começo a ter sono e mal posso esperar pelo dia de amanhã. Talvez ligue à Joana…” Daniel recomeça a rir com o disparate de toda esta situação. Esta manhã acordara decidido a pôr termo à vida e agora pensa no amanhã, numa outra rapariga, num outro amor, numa outra vida. Sabe que nunca vai esquecer verdadeiramente Rita, mas sente-se calmo, até um pouco feliz. Não consegue deixar de sorrir e fecha momentaneamente os olhos, a imaginar o futuro que tem pela frente. Os instantes que se seguem não duram mais do que uns segundos. Daniel abre os olhos. Há um cão a atravessar a estrada. Sustém a respiração. Gira o volante para a direita. O carro guina em direcção à berma. Morde os lábios. Os pneus chiam. Fecha os olhos. O carro capota. Daniel morre.
1 comentário:
É claro que te arranjo uma cópia em papel! Um dia destes, vais recebê-la por correio durham...:)
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