26/11/2007

(Título de conto ainda por dar - parte cinco)

Dezembro começou como um dia de final de Primavera, sem chuva nem frio, mas também sem um calor real. Luís, em dia de folga forçada, acordou com Areias junto à cabeça. Olharam-se e Areias tocou com o nariz no nariz do dono e amigo. Luís sorriu e virou-se para cima, pegando no gato e pousando-o no peito, enquanto fitava as manchas de humidade do tecto.

- Hoje vais voltar a ver a Inês, Areias… Lembras-te dela? Aquela rapariga que te levou ao veterinário e depois te trouxe aqui…

Areias, obviamente, não respondeu. Em vez disso, limitou-se a cravar as unhas ao de leve no peito de Luís e ronronou. Luís deixou-se levar pelas recordações do dia anterior, quando Inês entrou no “Refúgio” apenas para lhe perguntar se estava livre na tarde do dia seguinte, podiam tomar qualquer coisa e ele levava Areias. Sem pensar, o jovem assentiu de imediato. Quando Inês se foi embora, Rogério lembrou-se, como que por artes mágicas, de que Luís realmente já há muito que não tinha uma folga e estava com ar cansado. Sorriram um para o outro e Luís agradeceu com a escuridão dos seus olhos.

Combinaram encontrar-se num café quase em frente ao “Refúgio”, Luís queria evitar embaraços e sabia que, mesmo que chovesse, aquele café tinha uma esplanada abrigada e um daqueles aquecedores de exteriores que não sabia como se chamavam. Inês ia acabar por adorar a ideia, porque o dia estava realmente bonito. Ele chegou mais cedo do que o combinado, Areias parecia assustado com o movimento todo que via, mas acabou por adormecer antes de ela chegar.

- Olá, já chegaste há muito?

- Uns cinco minutos… – mentiu Luís – Senta-te, senta-te. Está tudo bem?

- Ui, estou um pouco cansada… Sou um bocado pau para toda a obra lá no escritório. Passo o dia a fazer recados, a ir ao notário, aos correios, de um lado para o outro. A semana passada até me ofereci para limpar o chão… Não que me tenham pressionado, mas confesso que já tinha nojo de andar lá.

- Mas que fazes tu lá, então? Pensei que fosses mesmo advogada…

- Não, longe disso! – Inês sorriu com um misto de desilusão e resignação – digamos que sou uma tradutora não muito bem sucedida que teve de se agarrar a um trabalho de que não gosta, mas que não podia recusar… Mas e tu? Não tens ideia de vir a ser mais do que empregado de mesa? – Inês arrependeu-se no instante em que acabou a pergunta. Temia que Luís se fosse sentir ofendido. No entanto, o jovem, que nunca pensara sequer no que queria ser, nem pestanejou.

- Não, eu gosto do que faço. Francamente, nem me imagino a sair de lá… O Rogério e a mãe dele, a Beatriz, são toda a família que tenho… – Luís pareceu ficar pensativo, por uns segundos, também ele com um sorriso desiludido e resignado, mas acabou por acrescentar – e o Areias, claro!

- Ah, sim! Deixa cá ver essa bola de pêlo!

Inês nem pensou que o gato poderia saltar para a rua, quando o tirou da gaiola. Felizmente, Areias lembrava-se dela e num ápice se agarrou às suas roupas e começou a roçar a cabeça no queixo dela.

- Isto é uma autêntica fera que aqui tens, Luís… – brincou Inês, não reparando que o jovem olhava para uma mesa onde acabara de sentar um indivíduo de óculos.

- Hum? Ah sim, um verdadeiro gato de guarda! – Luís continuava a observar o estranho e sorriu quando o viu tirar um livro do saco que trazia ao ombro. Inês reparou nisso e fez-lhe sinal com a cabeça a perguntar o que se passava. Luís aproximou-se dela e falou-lhe baixinho – Estás a ver aquele tipo que está ali naquela mesa? Ele vem aqui quase todos os dias. Fica a ler durante meia hora, sempre certinho, sem tirar os olhos do livro. Depois disso, começa a levantar os olhos para a rua de 10 em 10 segundos… – tiveram de tentar disfarçar cumplicidade de casal porque o estranho, pressentindo que falavam dele, olhou-os de soslaio – Depois passa uma rapariga que trabalha ali ao lado e ele aborda-a. É óbvio que não consigo perceber o que lhe diz, mas eu e o Rogério já tentamos ler-lhes os lábios e parece-nos que ele lhe pergunta sempre se ela quer tomar qualquer coisa, mas ela diz sempre que tem de ir. Ele então levanta-se, guarda o livro e vai com ela, não sei para onde…

- Mas não serão amigos?

- Não me parece, pelas atitudes de um e de outro…

- Isso é giro! Mas olha lá, vocês não trabalham lá no café? Não têm mais para fazer que não seja meterem-se na vida dos outros? – Inês fez um sorriso trocista.

- Oh, sabes como é, uma pessoa passa o dia metido numa sala, a ouvir disparates como “a manteiga da torrada estava demasiado derretida”, precisamos de uma novela de vez em quando para distrair…

Sorriram um para o outro e continuaram a conversar calmamente, como se de amigos se tratassem. Inês falou de si e do que a levou a aceitar um emprego que não queria. Não conseguia encontrar nada que se relacionasse com tradução e os poucos documentos que lhe vinham parar à mão eram ridiculamente pequenos e insuficientes para ganhar a vida. O pai falou com um amigo, o advogado que abrira o escritório onde ela trabalhava, a perguntar se não precisavam de uma secretária com conhecimentos de tradução. Ao tubarão cheirou logo a sangue e disse que sim, mas que não podia pagar muito mais do que um salário mínimo, sem fazer descontos, porque ela não tinha o curso de secretária… Luís ouvia e quase gravava toda aquela conversa. Quando chegou a sua vez de falar, pouco adiantou ao que Rogério já tinha contado sobre ele, disse apenas que gostava muito de ler, mas que só tinha dinheiro para comprar livros em alfarrabistas. E tentava estar sempre a ler, primeiro, porque não tinha televisão e era a única forma de se distrair e, segundo, porque no orfanato os livros não abundavam, o que o tinha feito crescer com uma curiosidade enorme em relação a tudo o que fosse literatura. A conversa – e o fascínio mútuo – desenrolou-se, até que, uns metros ao lado deles, ouviram:

- Olá, tudo bem? Queres tomar qualquer coisa? Um chá, que já sei que não tomas café… – o leitor estranho sorria e tentava não mostrar que tremia.

- Olá. Não, desculpa, mas tenho mesmo de ir apanhar o comboio, tenho gente à minha espera na estação para me darem boleia para casa…

- Tudo bem, vamos lá então…

O estranho levantou-se, guardou o livro à pressa e certificou-se de que já tinha pago a despesa. Depois avançaram lado a lado, a conversar como se se conhecessem há anos. Inês e Luís olharam um para o outro e sorriram com a cena. Luís segredou-lhe que já o via fazer isto há mais de um mês. Inês continuou a sorrir. Já os tinha visto na estação, a falarem, por vezes separados por uma porta de comboio que teimava em fechar e que eles teimavam em manter aberta, mas, mesmo nunca lhes tendo visto qualquer contacto físico, nunca pensou que estivessem ainda na fase de se conhecerem. Ficaram a pensar naquele estranho par durante uns segundos e depois continuaram a conversa. Por esta altura, Areias já era dono e senhor do colo de Inês…

2 comentários:

Anónimo disse...

Eheheheheheeeee

:p

polegar disse...

e aparece um novo núcleo... hummm...