30/10/2007

(Título de conto ainda por dar - parte um)

Às vezes, acontecem as coisas mais surpreendentes na vida de alguém. Por vezes, são coisas complexas, rebuscadas, piadas cósmicas do destino que, de tão remotas, passam ao lado de quem é atingido por elas. Outras vezes, são tão óbvias, tão claramente colocadas diante da pessoa que esta não tem outro remédio que não agir. Manhã de um qualquer dia de Outubro...

- Ei! Não! Esperem aí! - ele dirige-se para um camião prestes a descarregar areia numa obra na rua. Não se apercebendo completamente do que se estava a passar, os trabalhadores deram início à descarga e só pararam quando viram o jovem, quase todo vestido de preto, lançar-se à vala que estavam a tapar.

- Olha! É doido! Ei, sai daí que ainda ficas todo partido! – gritou-lhe alguém. Não lhe deu ouvidos. Com areia pelos joelhos, começou a cavar furiosamente com as mãos. Quase nem ouviu a voz feminina que o defendeu.

- Deixem-no estar, não descarreguem mais nada! Rápido, consegues vê-lo?

Os trabalhadores entreolhavam-se, perplexos. No espírito de alguns, formou-se a imagem de alguém que teria descido à vala, sem que eles vissem, e que estaria agora soterrado. O espanto foi geral quando o jovem, de nome Luís, conseguiu resgatar um gato preto do monte de areia que acabavam de despejar.

- Tanta merda por causa de um gato?! Nós temos horários a cumprir! Desapareçam os dois daqui antes que vos corra à paulada! – gritou um dos trabalhadores, depois de passado o espanto inicial.

Luís, segurando o gato entre os braços, saltou de imediato para a rua, com a jovem que o tentara ajudar momentos antes a segui-lo.

- Onde vais? Temos que o levar ao veterinário! Ele está a respirar? – perguntou ela, de seu nome Inês.

- Acho que não! Estou a ver se o faço cuspir a areia, mas ele não está a reagir! Espera… – num acto de desespero, o jovem agarrou o pobre animal pelas patas de trás e sacudiu-o no ar. O gesto, apesar de ter angustiado Inês, surtiu efeito, fazendo o gato cuspir uma boa porção de areia, soltando um miado enfraquecido logo de seguida – Funcionou! – exclamou, surpreendido.

- Sim! Mas e agora? É preciso levá-lo na mesma ao veterinário, ver se ele está bem…

- Pois… Mas eu estou atrasado para o trabalho… E já não é a primeira vez esta semana…

- Dá-mo cá. Eu levo-o. Tenho um horário mais flexível, ninguém me vai dizer nada se me atrasar. Além disso, nem que ligue do consultório enquanto espero. Onde trabalhas?

- Vês aquela esquina ali em cima? – Luís apontou para o cimo da rua íngreme onde estavam – Um pouco mais adiante há lá um café, o “Refúgio”. Sou empregado de mesa lá…

- Ok, vai lá então, a ver se nos despachamos os dois. Adeus.

- Adeus.

Luís sentia-se estranho a falar com uma desconhecida daquela maneira. No entanto, tinha um longo dia pela frente e suspeitava que ia começar com uma discussão, por isso sacudiu a areia da roupa o melhor que pôde e começou a subir a rua, quase em corrida.

- Ó Luís, pá, tu és sempre a mesma coisa, pá! Como é? Vou ter de começar a cortar-te no salário, pá?! – o gorducho bonacheirão que censurou Luís mexia-se como um louco a tentar atender três mesas ao mesmo tempo – Despacha-te e vai trocar de roupa. Espera lá, que figura é essa, pá?! As calças cheias de areia, as mãos todas sujas, que aconteceu, pá?! – Rogério, mostrando preocupação genuína depois da descompostura inicial, dirigiu-se ao amigo, andando como se dançasse o bolero – Estás bem, pá?

- Sim… É que houve ali um… acidente numa obra e eu fui ajudar… – nessa altura, embora não o admitissem nunca, os três clientes que Rogério estava a atender fitaram as orelhas a tentar perceber se havia feridos.

- Um acidente? Mas que foste tu fazer?

- Hum… Foi… um gato… que ficou soterrado…

- Luís, pá… Vai-te vestir que nem quero ouvir mais nada… – Rogério estava vermelho de fúria e a estranha dança de bolero que fazia ao andar parecia mais mexida que o habitual.

Já fardado, Luís acorreu aos clientes que ainda estavam por servir. Àquela hora da manhã, havia muita gente a querer tomar o pequeno-almoço e Rogério não tinha mãos a medir com torradas, tostas e queques, enquanto Luís tratava dos cafés e dos copos de leite. A hora da confusão do pequeno-almoço passou e estavam a preparar-se para a hora da confusão do almoço quando Inês entrou no “Refúgio”, com uma gaiola a miar.

- Olá! – disse ela ao reconhecer Luís.

- Tu?! Mas aconteceu alguma coisa? – Luís ajoelhou-se em frente à jovem, a espreitar para a gaiola que miava. Lá dentro, o gatito preto que umas horas antes tinha sido sacudido pelas patas, parecia reconhecer Luís e procurava brincar com ele, deitando uma pata pelas grades.

- Não, ele está bem, ficou um bocado assustado, está subnutrido, devia estar abandonado, mas um par de boas refeições e fica como novo, segundo o médico. Só receitou aqui uns comprimidos para os parasitas e levou uma injecção, mas nada de extraordinário, tendo em conta tudo o que se passou… – Inês sentia-se algo ridícula a tagarelar daquela forma com um estranho, mas não conseguia evitar.

- Mas… porque é que o trouxeste para aqui?

- Bem, tu estavas atrasado de manhã, por isso fui eu ao veterinário, logo parece-me justo que agora fiques tu com ele enquanto eu vou para o trabalho…

- Eu não quero esse bicho aqui! – meteu-se Rogério – Despacha-o, ó Luís!

Luís olhou para Inês e pela primeira vez reparou-lhe no brilho dos olhos. Eram castanhos e seriam banalíssimos se não tivessem um brilho de um castanho como nunca antes vira. Sentiu que passaram horas desde a ordem de Rogério e o momento em que finalmente se conseguiu abstrair do brilho de Inês. Na verdade, passaram apenas alguns segundos…

- Olha, o Rogério não é má pessoa, mas nós realmente podemos ter problemas com a inspecção por causa do gato. Não podes mesmo ficar com ele?

- Não, desculpa, mas não. Trabalho num escritório de advogados, não posso aparecer assim com um gato…

Luís pensou por uns momentos a fitar uma janela ao lado de Inês e agora foi ela que se apercebeu dos olhos dele. Eram de um preto absoluto, sem íris, sem brilho, de uma total ausência de sentimentos, a contrastar com o fervor com que, nessa manhã, se lançara à vala por causa de um simples gato.

- Espera aqui uns segundos… – Luís dirigiu-se à sala dos empregados, foi ao bolso das calças e tirou de lá uma chave. Voltou para junto de Inês – Eu moro no primeiro andar do número 117, perto do sítio onde nos encontramos hoje. Será que o podes deixar lá e depois, quando puderes, vens cá trazer a chave?

Inês, algo surpreendida, aceitou. Saiu do café, voltou a descer a rua e encontrou o número 117. Abriu a porta, entrou. Era um pequeno T0, com um biombo velho a separar a cama do resto da casa, que mais não era do que uma cozinha e uma sala. A única porta visível, para além da da entrada, dava para o quarto de banho. Tinha uma pequena aparelhagem a um canto e um monte de cd’s ao lado. A cama estava feita, de forma impecável. Não se viam fotografias ou quadros em lado nenhum, mas havia livros velhos empilhados um pouco por todo o lado. Inês decidiu soltar o gato no quarto de banho. Saiu e trancou a porta.

5 comentários:

O Estranho disse...

O Título continua em aberto, à espera de sugestões. Aceitam-se todas.
Polegar... Desculpa falar em gatos, mas isto realmente já estava planeado há algum tempo... Beijinhos

Anónimo disse...

Nice! Liberto, fluido...bom! Beijo
Não colaboro, tá dito!

polegar disse...

LOL Estranho, não tenhas problemas.
a minha bichana só me deu alegrias (e alergias), portanto é bom que se fale neles, e que haja mais quem os salve ;)

quanto ao teu conto do gato preto... sim senhor, começa bem!!!
quero mais!
beijocas

pinky disse...

estamos inspirados! cooool alguém q o esteja!

O Estranho disse...

Inspiração? Vamos ver até quando dura...